Saturday 17 August 2013

Autoria/Criação vs Progénie/Procriação


A função do homem enquanto homem, não é procriar. Esta é a função do animal, do homem enquanto animal. A função do homem enquanto homem (partindo do princípio que terá uma função), é a de criar (o que quer que seja). E se o homem é homem para além de animal, então esse é o seu predicado. O desejo de procriar advém de instintos básicos naturais. Desejar só isto, é ser só metade: o ser humano não se traduz somente em instintos básicos. Quem se fica pela metade, julgando que se está a realizar enquanto indivíduo, parece-me a mim que tão-só se descura e se trai. Não acredito que a procriação conceda plena auto-realização. Que realizaram, mesmo apesar de todo o milagre inerente a dar à luz (mãe) ou a quem preside (pai), é tudo com que posso concordar.

Esta inclinação teórica deve-se, também, ao facto de me parecer que aquele que nasce se torna, mal nasça, a meu ver, demasiado independente; de uma vida tão própria que quase me parece demasiado (ainda que o compreenda enquanto potencial pai mas, enquanto tal, o tente não alimentar) que o progenitor se sinta plenamente auto-realizado por o ter tido, e isto porque, do meu prisma, é como se não fosse obra sua. Trata-se de uma obra de outro tipo, uma obra orgânica e psicologicamente ímpar, embora criada por intervenção de outrem, trazendo consigo características de outrem, mas que, ainda assim, ainda assim, pertence-se mais a si mesma do que ao seu criador; no sentido em que cada um, cada indivíduo, é tão mais seu quanto a sua consciência lho permitir e para isso tiver, claro está, capacidade. Haverá casos que contrariarão isto, não para aqui chamados, porém. Tão potencialmente independentes, que não terão sequer, isto é, por força de obrigação, de dar satisfações a quem quer que seja por existirem. Porque o filho, na realidade, é livre, se quiser, de se desvincular moralmente dos respectivos progenitores.

Esta sintomia em nada pretende anular o sentimento de amor, de orgulho, mesmo de pertença que se sinte por aquele a quem se deu vida ― milagre provavelmente magnífico, repito ―, nem vice-versa. Eu, que já sonhei que era pai, que tinha a minha filha nas mãos, havia água e sol, e ela, com uns mesitos apenas, brilhava tanto que eu não sei se a luz vinha do sol, se dela. Mas, apesar da indissociável ligação (se forem criados laços, está claro, pelo menos biológicos), o filho não pertence aos progenitores com a mesma propriedade a que o objecto artístico está sujeito ao autor. Logo que nasce, existe demasiado por si. Há uma ligação (subaquática) entre o continente e a ilha, no entanto a ilha está isolada ― é já ela mesma e não apenas uma extensão do continente. Tal como o filho não é mera extensão dos pais. Daqui o sentido de indivíduo indiviso. O reconhecimento, a consanguinidade, são meras aproximações: o que nos liga verdadeiramente ao outro, mais que tudo, é a imaginação, essa forma de nos repensarmos. Já as obras do criador, terão sempre mais dificuldade, senão impossibilidade, de existirem sem aquele que lhes dá a forma e o sentido. Mesmo depois da morte do autor. Posso conhecer certo indivíduo, gostar dele e pouco ou nada me interessar a respectiva progénie. Quanto à obra artística, não há quem não tenha sempre uma maior curiosidade relativamente ao respectivo criador. Para além do mais, o criador estará sempre no seu pleno direito de as reclamar como suas, de sua autoria, que elas nunca o hão-de negar. Entre obra e autor, jamais poderá haver um conflito moral, embora entre autor e obra isso seja já possível, o que, contudo, não interessa ao tema aqui tratado. Pois é claro que poderão haver imensas teorias possíveis quanto à autoria e à obra, por quanto haja de autores que possam achar-se distantes da sua criação. Mas há que discernir que aqui se faz a comparação-distinção entre o grau ou peso da autoria e progenitura em relação ao objecto criado. Do que concluo: só à obra criada criativamente (seja qual for) poderá sobrevir auto-realização. E, contra um possível argumento: nunca a prole humana ― apartando-nos, desde já, de todo e qualquer argumento poético-sentimentalista ― poderá ser considerada do ponto de vista criativo, senão do da realização natural, biológica (mesmo tendo em conta todo o milagre subjectivamente inerente à mesma: a poesia abarca sempre tudo). Os homem e as mulheres precisarão bem mais da sua obra do que precisarão dos seus filhos, ainda que do ponto de vista afectivo e biológico estes lhes sejam, de longe, mais importantes.

Dediquei-me aqui, ainda que concisamente, a uma análise tentativamente abnegada, relegando-me tanto quanto possível do grave e tenso pressuposto dos laços afectivos, de forma a aproximar-me melhor daquilo que importa: o indivíduo enquanto potencialidade, isto é, o indivíduo emancipado.

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