«[...] o dano causado pelos bons, é o mais prejudicial dos danos.»
F. Nietzsche, Ecce Homo, Porque Sou Um Destino, 4, Ed. 70
No plano intelectual, a tolerância é assentimento irreflectido, imaturo; parte do lado irresponsável, preguiçoso, débil e trivial do ser pensante. Há que ser intolerante; consigo mesmo acima de tudo. A tolerância é inimiga do avanço e do fazer e do autocompromisso individuais. Ser tolerante para com a pobreza alheia é permitir-se, por conseguinte, à preguiça. Todo o espírito desmazeladamente consenciente não acusa mais do que as suas próprias incompetências. Cínicos e ínvidos, revoltar-se-ão, depois, contra os capazes, ressentidos senão com a sua meia-pessoa. De resto, este será todo o movimento a que esses toldados e inúteis hão-de saber ainda prestar-se...
Apontam
assim, os autómatos-infantes, ao espírito intolerante: «Também tu não
és perfeito, portanto, por que és intolerante?» A resposta só poderia
ser uma (a que as suas mentes ainda pouco desenvolvidas, vítimas de
ideias de base cristãs, i. e., de uma cultura do fraco, e de uma
hodiernidade alienante que os vitimiza sem que se apercebam, não
conseguiriam alcançar): «Sou intolerante porque quero o melhor para mim.
Também eu sou o outro; e se o outro for decadente, como poderei,
eu que o não quero, tolerá-lo?» Além disso, aquilo a que todos tentam
escapar ― a dificuldade ―
é a melhor fautriz da humanidade. A condescendência, por seu lado, é a
assassina do espírito e do corpo. Eis então o que na cultura moderna
preenche todos os espaços do ser: a ausência.
Não
se trata de imperativos para com o outro. Trata-se de rejeitar a
contabescência e ser feroz nisso quanto necessário. Reinstaurar o dever
para consigo ― por vero amor a si e à vida, finalmente, e não por caridade, pena ou culpa. Ser bom não é deixar contabescer ―
isso é ser mau. Vivemos uma cultura do desprezo pela vida, da inépcia,
do frouxo e, incompetentes, ainda afirmamos ser normal. A compaixão
provar-se-á melhor se mascarada de intrepidez, a doçura se ao abrir da
mão o que tiver para oferecer for a coragem. Ao invés, o preguiçoso, que
nem uma máscara sabe envergar, pretende o seu semelhante à sua imagem,
qual vera-efígie onde se reconheça e aplaque ― é a via mais permissiva do autodesprezo, arranjarem outro igual a si.
Nem
isto é um atentado ao ócio, mas tão-só ao espírito fraco, que dia após
dia se ilude no escuro da sua caverna, enquanto o tempo em que vive, o
útil e belo presente, é adiado. O que acontece? Desperdiça o presente e
compromete o futuro, atado a fantasias de incompetência. Os doentes das
fantasias, ou da espectacularidade e consumo, desaprenderam a vida. São
os lamentosos, os queixosos, os maus leitores, que vivem dos ses e dos sonhos...
Ao passo que na realidade, apanharam o gosto ao lamento, à dor, à
prorrogação. E depois ainda, fazem colecção de confidentes de todo o
tipo, porque se detestam, e porque projectam, no outro e nas coisas, a
sua liberdade perdida ― e tudo porque sempre se recusaram a assumi-la em
si mesmos: no real. Desconfio mesmo que, em certos casos, possuam o
desejo oculto de despejar o seu mal-estar para dentro do outro, a quem
ainda chamam de amigo. Vêem neste um padre da sua desgraça; o mesmo
acabam fazendo com a poesia e a arte, que tornam receptáculos exclusivos
de maleitas. Portanto, para esses, a amizade e os elevadores do
espírito são meros depósitos para onde tentam esvaziar-se. Mas, se são
eles mesmos, operários de índole fabril, os produtores de tal indústria
residual!... Tudo aquilo a que se agarram ― amizade, família, psicólogos ―
não passa de uma forma pusilânime de fuga; e tudo sem olhar a meios
(por vezes a saúde deles e a dos outros, que os aturam) para atingir
nenhum fim! Parece que, de tudo o que vive, introjectam apenas
definhamento pessoal: não imitam o bom exemplo (i. e., o que é bom para
eles), invejam-no. Parece que não suportam tudo o que é vivo; querem tudo à altura do seu ego baixo e macabro.
O espírito intolerante
de que este texto fala, não tem mais direito a sê-lo do que o
preguiçoso àquilo que é. Mas é contudo norma que seja este a achar-se
vitimizado pelo simples facto de o intolerante nutrir uma opinião
(esperemos que fundada, não vá cair no mesmo que o seu ímpar) sobre a
inutilidade do ínvido preguiçoso ― o que revela muito... ―,
pois que este, demasiado preguiçoso para sequer formular uma opinião
razoável, sabe não outra coisa que empertigar-se e balbuciar. É a
capacidade de argumento dos espíritos incomptos.
O espírito intolerante
só o é porque teme por si e porque, acima de tudo, conhece o sentido
solar da Vida: ao deparar com um mundo de anelídeos, salvo reduzidas e
defuntas excepções, antevê, em desesperada introjecção, devido à falta
de exaltantes referências entre os seus pares, restar-lhe senão o mesmo
estupor. ―
Eis então a razão da intolerância do espírito, eis o que teme (sim, que
a sua intolerância mais não é do que o seu saudável instinto de defesa e
ataque em acção): sente receio que, sobre a sua promissora condição
humana, tal como a sonha e respira, recaia o avatar da minhoca (bicho a
que aqui se faz alusão meramente a título metafórico, pois que todos lhe
conhecem a utilidade; a Natureza é de carácter útil). O intolerante,
cujo espírito é afirmativo (Nietzsche), receia definhar antes do tempo
feral, à imagem do que acontece com muitos dos seus semelhantes. Mas não
só por isso é intolerante. É-o também porque, a par de compreender e/ou
deduzir as variadíssimas causas da preguicite, a não pode aceitar, por
sobremodo acreditar em si e (ainda) naqueles a cuja espécie pertence:
(ele é também os outros). Pois que também o intolerante possuiria todas
as razões para não fazer nada, só que, forte e perseverante, debate-se e
vence-se a cada confronto, instrui-se, reinstaura-se e subleva-se acima
das perniciosas influências da histórica contabescência ― compreende o mundo, a Existência, fora da aviltante esfera cultural moderna (pseudo-cultural).
A
preguiça impregna o corpo e a acção. Os motivos, são de origem
exterior, está claro. Mas é da incapacidade de percepção do seu
permissor que aquela se desenvolve; uma percepção, portanto, já
anteriormente danificada pela grande conjectura da História (que, com um
pouco de atenção e análise, ficará claro para todos). Não há culpa,
portanto. Há trabalho a fazer...
Assim, o espírito intolerante,
por via de um processo em que a sua consciência transmigra para fora de
si e se aproxima do Todo, quer procurar e reconhecer-lhe as fundações,
tanto quanto possível. Ainda que nem tudo lhe seja claro, entrevê. É o
amigo da claridade, do saber. Indiviso entre Si mesmo e Deus, Terra e
Cosmos, Mal e Bem, esta espécie de demiurgo tenta olhar, acima de tudo,
com entendimento. É o filósofo: aquele que procura entender. E a par de
entender, como parte que é inserida no todo, não deixa de negar, de
atacar, de intervir e de exigir Mudança. Eis porque não tolera. A tolerância é cega, vassala da estagnação; o filósofo, nunca.
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